Eduardo Loos

Queixo caído

No início dos anos 80, aqui no Brasil, nós gamers frequentávamos os “fliperamas”, onde jogos eletrônicos dividiam espaço com os pinballs, eletromecânicos. O Telejogo já era algo obsoleto e ansiávamos pela chegada dos consoles domésticos, que de fato ocorreu em massa, em 1983.

Odyssey, Atari e Intellivision, povoavam nossos desejos de consumo (o Colecovision e seu clone Splicevision, eram sem dúvida, nosso sonho maior, especialmente ao lermos revistas de games da época, como a Micro & Video, mas eram raros e caros demais). O Odyssey largou na frente, mas logo foi ultrapassado pelo Atari 2600 e seus clones, que dominaram o mercado nacional. O Intellivision corria por fora, como uma alternativa mais interessante (em termos de cores, som, etc), mas também sofria por seu alto custo. Em pouco tempo, aqueles consoles já não eram mais novidade. Todos os lançamentos eram apenas “mais do mesmo”. Em plena reserva de mercado, outras opções não chegavam por aqui.

Paralelo a tudo isso, os computadores pessoais cresciam de vento em popa. Dezenas de modelos e clones (impulsionados pela própria reserva de mercado), com os mais variados preços e públicos, invadiam lojas de departamento, óticas, supermercados, etc. A mística de serem equipamentos difíceis de usar e de custo proibitivo caía por terra, com as linhas Sinclair, Spectrum e TRS-Color. A biblioteca imensa de jogos era algo que chamava muito nossa atenção. A variedade de revistas nas bancas, nos abastecia de informações. Na escola, grupinhos de usuários eram formados – as primeiras “guerras de plataforma”, bem antes do clássico embate Sega X Nintendo, já povoavam discussões na hora do recreio.

No final de 1985, uma linha de micros, surgida com o propósito de ser um padrão mundial, o MSX, chegou ao Brasil, através de duas gigantes locais: Gradiente e Sharp. Sua facilidade de uso, qualidade de seus jogos, presença maciça na mídia e nas lojas, logo o transformou em uma febre de vendas. Diversos jogos e aplicativos nacionais foram desenvolvidos para ele. Tínhamos a noção clara que, além de jogar, podíamos utilizar o MSX para outras tarefas, que os micros pessoais podiam nos proporcionar. O fato de usar cartuchos (além de outras mídias) o aproximava dos consoles, que estávamos habituados até então. Com a versão 2.0, os jogos puderam nos proporcionar ainda mais encanto, com sua qualidade e títulos memoráveis como “Aleste”, “Vampire Killer” ou “Metal Gear”.

Na segunda metade dos anos 80, devido à facilidade de compras no Paraguai, alguns conhecidos puderam ter NES antes do lançamento oficial de seus clones por aqui (apenas em 1989). Para quem usava MSX, o “nintendinho” não foi nenhuma surpresa. Hardwares semelhantes, alguns jogos em comum, alguns piores, outros melhores. O Master System, em 1989, trouxe um hardware melhor que o NES, mas experiência equivalente. Estávamos presos às limitações dos 8-bits.

Em 1989, alguns usuários em São Paulo começaram a utilizar um novo computador (que já existia desde 1985). Seu nome: Commodore Amiga. Ouvíamos falar dele em revistas e em conversas entre amigos. No início de 1990, um amigo paulistano, o qual eu mantinha contato pelo Videotexto, enviou uma fita VHS, com a inscrição “ASSISTA LOGO” em sua etiqueta.

Ao assistir, um misto de emoções dos mais variados tipos, logo tomou conta de mim (e meus conhecidos que a assistiram depois). Logo de cara, abertura com muitas cores simultâneas, voz humana perfeita e asteróides animados desfilando pela tela. A música tinha uma qualidade que ainda não tínhamos contato até então, em qualquer plataforma (seja computador ou console). Era a abertura de “Blood Money”, da Psygnosis. Logo depois dele, “Shadow of the Beast”, com um scroll paralax inimaginável, sem contar a fantástica trilha sonora. Um após o outro, os jogos (além dos demos e aplicativos) foram desmontando o que estávamos acostumados até então. Todo o mundo 8-bits, incluindo todos os micros e consoles, haviam ficado para trás de uma forma implacável. Era impossível olhar da mesma forma pro meu MSX2 (ou pros consoles da época), sem sonhar em ter logo um Amiga (o que consegui realizar na metade daquele ano).

O Amiga proporcionava jogos com maior qualidade, nos introduziu ao mundo dos polígonos e 3-D, nos mostrou os primeiros jogos de mundo aberto, sem contar o uso de um sistema operacional de multitarefa real, aliado a softwares para todo e qualquer uso (editores gráficos, de texto, planilhas, modeladores 3-D, composição musical, titulação de vídeo, animação gráfica, etc). Era um micro pessoal em sua essência.

Queixo caído: nenhum outro termo poderia descrever o que aconteceu em 1990, quando tive contato pela primeira vez com um Amiga. Jamais uma transição de plataformas ou gerações (e aqui eu incluo todos os consoles domésticos também) foi capaz de proporcionar tamanho encanto. Nem mesmo o salto de 16 para 32 bits chegou perto (pois sabíamos que era apenas uma evolução natural, já previsível para quem começou cedo).

VJB

Gramado, na Serra Gaúcha, é um dos destinos turísticos mais procurados do Brasil. Gastronomia, belezas naturais, museus e seu clima de montanha, estão entre seus atrativos. Em julho de 1987, um grupo de amigos viajou com suas famílias até lá. Saíram de Brusque, Santa Catarina, com destino ao Hotel “Laje de Pedra”, um dos mais tradicionais da região. Meus pais estavam neste grupo, onde meu irmão Klaus e minha irmã, Marina também estavam, junto com vários amigos, que eram filhos das demais famílias do grupo.

O Hotel era excelente, estendendo-se por uma grande área, com diversas atrações para os hóspedes. Mesmo com a cidade oferecendo inúmeras opções de passeios, você poderia passar um bom tempo hospedado, entretido com as piscinas aquecidas, quadras de esportes, trilhas para caminhada e algo que chamou a atenção, não só minha, mas como de meus amigos: na sala de jogos haviam um “Fliperama” (como chamávamos os arcades naquela época) !

Sim, quando adentramos ao recinto, nossos olhos brilharam: “Commando”, “Karate Champ”, “Tokio”, “Rally X”, “Xevious”, “Galaga”, entre outros. No canto da sala, um gabinete novinho de “Pole Position” (como o adesivo “Mil Milhas”, como a Taito do Brasil nomeava o jogo na época, por aqui).

Aquela mistura de sons, de todas aquelas máquinas, em uma fase de ouro dos arcades, ainda soa como uma sinfonia em minhas lembranças. Por nossa sorte, as fichas para jogar nas máquinas custavam pouco. Tinham um preço especial para os hóspedes. Então uma gorjeta de nossos pais nos permitiam jogar muitas e muitas vezes.

Meu irmão Klaus, na época piloto profissional de Kart, tinha o “Pole Position” como seu jogo favorito. E ele tinha bom gosto, pois aquele jogo era sensacional. Mesmo sendo de 1982, era muito bem-feito e seu realismo e efeitos sonoros impressionavam.

Após nos instalarmos nos quartos, reconhecermos a área do Hotel, iniciamos os passeios pela cidade, mas querendo logo retornar, para poder jogar. Imediatamente fui pra máquina de “Commando”, que na época era ´novidade´. Meu irmão foi fazer sua primeira corrida, cravando um terceiro lugar na classificação geral. Um detalhe logo chamou sua atenção: todos as iniciais de jogadores com as cinco primeiras posições, eram as mesmas – VJB. De início pensamos que seriam as iniciais padrão, de quando você ligava a máquina e a classificação estava zerada para aquele dia. Klaus jogou mais algumas vezes, melhorando seu tempo, colocando suas iniciais – KPL – em diversas posições do ranking.

No dia seguinte, após o café da manhã e antes de um passeio, fomos até a sala de jogos. Uma das máquinas estava com defeito. Colocávamos as fichas e não iniciava os jogos. Então logo chegou um funcionário do Hotel, um senhor de bigode, que carregava um molho de chaves pendurado em seu cinto. Com uma das chaves, abriu a parte coletora de fichas, logo consertando o problema. Meu irmão foi fazer uma corrida com uma ficha apenas. Fez um ótimo tempo, podendo colocar suas iniciais no ranking. E novamente, entre as primeiras posições, todas eram “VJB”. Klaus me disse que aqueles tempos, do primeiro, segundo e terceiro lugares, eram muito baixos, difíceis de serem alcançados. Teria que fazer uma corrida “perfeita”, sem errar nenhuma curva ou troca de marcha.

Aquilo o deixou intrigado. Passou a frequentar mais a sala de jogos do que nós, “nerds” habituais de micros e consoles domésticos. Em certo momento, conseguiu um segundo lugar no ranking. Vibrou com suas iniciais ali na tela. Mas sua alegria não durou muito. Naquele mesmo dia, a noite, “VJB” estava novamente ocupando as primeiras posições, jogando “KPL” para um modesto quinto lugar. Foi quando nos demos conta que não eram iniciais da máquina, configuradas de fábrica, mas sim, de alguém no hotel, muito habilidoso (e competitivo).

Na manhã seguinte, a revelação. Um de nossos amigos, que havia acordado cedo e já frequentara o fliperama antes do café da manhã, nos trouxe a novidade: “VJB” era o técnico que havia consertado a máquina no dia anterior ! Ele era o primeiro a chegar na sala de jogos. Ligava todas as máquinas, recolhia as fichas, pois tinha todas as chaves das mesmas. E em seguida, sentava-se no Pole Position e ficava por algumas corridas ali.

Meu irmão, sabendo agora que seu algoz era real, passou a jogar ainda mais, levando a sério cada corrida, dando tapas no volante a cada erro cometido. Mas todo este treinamento valeu a pena. Naquela noite, o hotel realizou um bingo, na sala de convenções, próximo da sala de jogos. Quem estava cantando as pedras ? O próprio “VJB”. Era a deixa que Klaus precisava. Com diversas fichas na mão, jogou até conseguir realizar a corrida que estava almejando: o primeiro lugar no ranking! Anotamos o tempo que ele conseguira naquela corrida. Mais tarde, eis que “VJB” chegou e parou ao lado da máquina. Claramente foi checar o tempo e as iniciais e percebemos um belo sorriso, movimentando seu bigode de uma forma inconfundível, ao perceber que ele havia sido batido no jogo. Ele tentou disfarçar, mas olhou ao seu redor para tentar identificar quem era o dono daquele feito.

O dia da despedida chegou. Todos nós voltaríamos para casa, mas claro, não sem antes gastarmos as últimas fichas que haviam sobrado. Ao entrarmos na sala de jogos, nos deparamos com ele, “VJB”, jogando. Ficava engraçado com aquele terno justo e sapato que brilhava mais que as telas dos jogos no recinto. Ele tentou desesperadamente, mas não bateu o tempo que ele almejara desde o dia anterior. Estava nítido seu descontentamento. Ao sair da máquina, deixou o recinto por um tempo. Klaus foi fazer uma última tentativa e fez uma ótima corrida, colocando suas iniciais na primeira posição até aquele momento. Ao tirarmos nossos olhos do jogo, “VJB” estava em pé, atrás da máquina, balançando positivamente sua cabeça. Percebera naquele momento quem era seu oponente.

Tivemos que sair correndo, pois todos já aguardavam no lado externo, colocando as malas nos carros. Todos instalados, iniciamos a viagem, passando ao lado da entrada da recepção. “VJB” estava no lado de fora, e com um sorriso, acenou pra todos nós.

Nunca soubemos o seu nome ou o significado de “VJB”. Poderia ser Valério, Valdir ou Venâncio, mas nós e principalmente meu irmão, soubemos a emoção que aquela disputa trouxe. Uma rivalidade velada e o reconhecimento final entre grandes competidores.